CAPÍTULO III
TENDO UMA
EXPERIÊNCIA
John Dewey
A experiência
ocorre continuamente, porque a interação da criatura viva com as condições que
a rodeiam está implicada no próprio processo da vida. Sob condições de
resistência e conflito, aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa
interação qualificam a experiência com emoções e idéias, de maneira tal que
emerge a intenção consciente. Com freqüência, entretanto, a experiência que se
tem é incompleta. As coisas são experimentadas, mas não de modo tal que se
componham em uma experiência. Há distração e dispersão; o que observamos
e o que pensamos, o que desejamos e o que alcançamos, permanecem desirmanados
um do outro. Pomos nossas mãos no arado e voltamo-nos para trás; começamos e
logo nos detemos, não porque a experiência haja alcançado o fim em vista do
qual foi iniciada, mas por causa de interrupções estranhas ou por qualquer
letargia interna.
Em contraste com
tal experiência, temos uma experiência quando o material experimentado
segue seu curso até sua realização. Então, e só então, ela é integrada e
delimitada, dentro da corrente geral da experiência, de outras experiências.
Determinado trabalho termina de modo satisfatório; um problema recebe sua
solução; um jogo é executado completamente; uma situação, seja ela tomar uma
refeição, jogar uma partida de xadrez, manter uma conversação, escrever um
livro, ou tomar parte em uma campanha política, é tão íntegra que seu fim é uma
consumação e não uma cessação. Tal experiência é um todo e traz consigo sua
própria qualidade individualizadora e sua auto-suficiência. É uma experiência.
Os filósofos,
mesmo os filósofos empíricos, falaram a maior parte das vezes da experiência em geral. Não obstante, o
falar idiomático refere-se a experiências, cada uma das quais é singular e tem
seu próprio começo e fim. Pois a vida não se apresenta como uma seqüência ou
corrente uniforme e sem interrupções. Constitui-se de histórias, cada uma com
seu próprio tema, seu próprio princípio e movimento dirigido para sua terminação,
cada uma com seu próprio e particular movimento rítmico; cada uma com sua
própria qualidade não-repetível que a impregna. Se bem que subir a escada seja
um ato mecânico, dá-se através de passos individualizados, não por uma
progressão indiferenciada; e um plano inclinado destaca-se de outras coisas ao
menos pela brusca descontinuidade.
A experiência, em seu sentido vital,
define-se por aquelas situações e episódios que chamamos espontaneamente de
"experiências reais"; por aquelas coisas das quais dizemos, quando as
lembramos, "aquela foi uma experiência". Pode ter sido algo de enorme
importância - uma altercação com alguém que alguma vez foi amigo íntimo, uma
catástrofe finalmente evitada por um fio. Ou pode ter sido algo relativamente
insignificante - e que, talvez, por causa mesmo de sua insignificância, ilustra
melhor o que é ser uma experiência. Há nos restaurantes de Paris comidas a
respeito das quais se diz que "aquela foi uma experiência".
Distinguem-se como uma lembrança memorável do que pode ser a comida. E há
aquela tempestade pela qual alguém passou ao cruzar o Atlântico - tempestade
que parecia, em sua fúria, tal como foi experimentada, resumir em si própria
tudo o que uma tempestade pode ser, completa em si própria, ressaltada porque
distinta do que sucedeu antes e do que veio depois.
Em tais
experiências, cada parte sucessiva flui livremente, sem junturas nem vazios,
para aquilo que vem a seguir. Ao mesmo tempo, não há sacrifício da identidade
própria das partes. Um rio, enquanto distinto de um reservatório, flui. Mas seu
fluxo proporciona uma precisão e um interesse a suas partes sucessivas maior do
que os existentes nas partes homogêneas de um reservatório. Em uma experiência,
o fluxo vai de algo a algo. Como uma parte conduz a outra e como outra parte
traz aquela que veio antes, cada uma ganha distinção em si própria. O todo
permanente é diversificado por fases sucessivas que constituem ênfases de seus
variados matizes.
Devido a seu
contínuo ressurgir, não há brechas, junturas mecânicas, nem pontos mortos,
quando temos uma experiência. Há pausas, lugares de descanso, mas elas
pontuam e definem a qualidade do movimento. Resumem o que se passou e evitam
sua dissipação e sua vã evaporação. Sua aceleração é contínua e sem descanso,
de maneira tal que evita a separação das partes. Em uma obra de arte,
diferentes atos, episódios, acontecimentos mesclam-se e fundem-se numa unidade
e, não obstante, não desaparecem nem perdem o seu próprio caráter quando isto
sucede - justamente como em uma conversação acalorada há intercâmbio e fusão
contínuos e, contudo, cada interlocutor não apenas mantém seu próprio caráter,
como ainda o manifesta mais claramente do que o desejaria.
Uma experiência
possui uma unidade que lhe confere seu nome, aquela comida, aquela
tempestade, aquela ruptura de amizade. A existência dessa unidade está
constituída por uma qualidade única que penetra toda a experiência,
apesar da diferença de suas partes constitutivas. Unidade que não é nem
emocional, nem prática, nem intelectual, porque esses termos denominam
distinções que a reflexão pode estabelecer no interior dela. No discurso acerca
de uma experiência, somos forçados a usar tais adjetivos de interpretação.
Estudando uma experiência após sua ocorrência, podemos observar que uma
propriedade, mais do que outra, foi dominante, de maneira a caracterizar a
experiência como um todo. Há especulações e investigações absorventes que o
homem de ciência e o filósofo recordarão como "experiências" no
sentido enfático do termo. Em sua significação definitiva, são intelectuais.
Mas no momento em que ocorreram foram igualmente emocionais; foram deliberadas
e volitivas. Não obstante, a experiência não foi uma soma desses diversos
caracteres; eles estavam perdidos nela como traços distintivos. Nenhum pensador
poderá dedicar-se a suas ocupações, a não ser atraído e recompensado por
experiências integrais que intrinsecamente valham a pena. Sem elas nunca teria
sabido o que é realmente pensar, - e seria completamente incapaz de distinguir
o pensamento real do espúrio. O pensamento processa-se por séries de idéias,
mas as idéias formam uma série apenas porque são muito mais do que uma
psicologia analítica chama de idéias. São aspectos, distintos emocional e
praticamente, de uma característica subjacente em desenvolvimento; são suas
variações móveis, não separadas e independentes, como as assim chamadas idéias
e impressões de Locke e de Hume, e sim matizes sutis de uma tonalidade
impregnante e em desenvolvimento.
Dizemos de uma
experiência de pensamento que alcançamos ou extraímos uma conclusão. A
formulação teórica do processo faz-se freqüentemente em termos tais que
efetivamente ocultam a semelhança da "conclusão" com o aspecto
consumatório de toda experiência integral em desenvolvimento. Essas
formulações aparentemente decorrem das proposições separadas que são as
premissas e da proposição que é a conclusão, tal como aparecem na página
impressa. A impressão provém de que há primeiramente duas entidades
independentes e já feitas que são a seguir manipuladas de modo a originar uma
terceira. De fato, numa experiência de pensamento as premissas surgem apenas
quando uma conclusão se toma manifesta. Tal experiência, como na observação de
uma tempestade, alcança sua culminância e decai gradualmente, apresentando
contínuo movimento de temas. Como no oceano tempestuoso, há uma série de ondas;
sugestões erguendo-se e esboroando-se bruscamente, ou sendo trazidas avante
pela cooperação de uma onda. Se é alcançada uma conclusão, é a de um movimento
de antecipação e de acumulação que por fim chega a completar-se. Uma
"conclusão" não é uma coisa separada e independente; é a consumação
de um movimento.
Portanto, uma experiência
de pensamento tem sua qualidade estética própria. Difere daquelas experiências
que são reconhecidas como estéticas, mas somente com respeito a seus materiais.
O material das belas-artes consiste em qualidades; o da experiência, que conduz
a uma conclusão intelectual, consiste em signos ou símbolos que não possuem uma
qualidade própria intrínseca, mas que substituem coisas que podem, em outra
experiência, ser experimentadas qualitativamente. A diferença é enorme. É uma
das razões pelas quais a arte estritamente intelectual nunca será popular como
o é a música. Contudo, a própria experiência tem uma qualidade emocional
satisfatória, porque possui uma integração interna e uma realização alcançada
por um movimento ordenado e organizado. Tal estrutura artística pode ser
imediatamente sentida. Sob este aspecto, é estética. O que é ainda mais
importante é que não apenas é essa qualidade um motivo significativo para o
empreender uma investigação intelectual e para que seja conduzida honestamente,
como também nenhuma atividade intelectual será um acontecimento integral. (uma
experiência), a menos que seja integralizada pela mencionada qualidade. Sem
ela, o pensar é inconclusivo. Em suma, o estético não pode ser separado de modo
taxativo da experiência intelectual, já que esta deverá apresentar cunho
estético a fim de que seja completa.
O
mesmo enunciado é também válido no que se refere ao curso de uma ação
predominantemente prática, isto é, aquela que consista em um fazer externo. É
possível ser-se eficaz na ação e, não obstante, não se ter uma experiência
consciente. A atividade é demasiado automática para permitir o sentido do que é
e de onde está sucedendo. Chega a um fim, mas não a um término ou consumação na
consciência. Os obstáculos são superados com sagaz habilidade, mas não
alimentam a experiência. Há também os que vacilam na ação incerta e não conclusiva,
como as sombras na literatura clássica. Entre os extremos de uma eficácia sem
objetivo e mecânica, há os transcursos de ação em que, através de feitos
sucessivos, faz-se presente um sentido de crescente significado conservado e
que se acumula em direção a um término que é sentido como a culminação de um
processo. Os políticos e generais de êxito que se convertem em homens de Estado
como César e Napoleão têm algo de atores. Em si mesmo isto não é arte, mas é,
acredito, um sinal de que o interesse não é exclusivamente, talvez nem
principalmente, mantido pelo resultado em si próprio (como no caso da mera
eficácia), mas pelo resultado enquanto fruto de um processo. Há interesse em
completar uma experiência. A experiência pode ser danosa para o mundo e sua consumação
indesejável. Mas possui qualidade estética.
A identificação
grega da boa conduta com a conduta que tem proporção, graça e harmonia, o kalón-agathón,
é um exemplo óbvio da qualidade estética distintiva na ação moral. Um dos
grandes defeitos daquilo que passa por ser moralidade é sua qualidade
inestética. Em vez de exemplificar a ação plena, toma a forma de mal-humoradas
concessões fragmentárias às exigências do dever. Mas os exemplos correm o risco
de obscurecer o fato de que toda atividade prática adquirirá qualidade estética
sempre que seja integrada e se mova por seus próprios ditames em direção à
culminância.
Pode ser
apresentado um exemplo geral, se imaginarmos uma pedra, a qual esteja rolando
por uma colina, para ter uma experiência. Sua atividade é seguramente
suficientemente "prática". A pedra parte de algum lugar, e
movimenta-se, conforme o permitam as condições, para um lugar e para um estado
onde possa permanecer imóvel - para um fim. Agreguemos, pela imaginação, a tais
fatos externos, as idéias de que a pedra olha para diante desejando o resultado
final; que se interessa pelas coisas que encontra pelo caminho, condições que
aceleram e retardam seu movimento em relação a seu término; que atua e sente
com respeito a elas de acordo com a função de impulsioná-la ou detê-la que lhes
atribua; e que a chegada final ao repouso seja relacionada com tudo o que
aconteceu antes enquanto a culminância de um movimento contínuo. Então a pedra
teria uma experiência, e dotada de qualidade estética.
Regressando deste
caso imaginário para nossa própria experiência, veremos que ela se encontra
mais próxima do que acontece com a pedra verdadeira do que quer que satisfaça
às condições imaginárias descritas. Porque em grande parte de nossa experiência
não nos ocupamos da conexão de um incidente com o que sucedeu antes ou com
aquilo que há de suceder depois. Não há interesse algum que controle a seleção
ou recusa atentas do que será organizado na experiência em desenvolvimento. As
coisas acontecem, mas nem são definitivamente incluídas, nem decisivamente
excluídas; navegamos à deriva. Cedemos de acordo com a pressão externa, ou nos
evadimos e nos comprometemos. Há começos e cessações, mas não há genuínos
inícios e conclusões. Uma coisa substitui outra, mas não a absorve nem a traz
consigo. Há experiência, mas tão lassa e digressiva que não é uma experiência.
Nem é preciso dizer, tais experiências não são estéticas.
Portanto, o
não-estético encontra-se entre dois limites. Em um pólo está a sucessão lassa
que não começa nem termina - no sentido de cessar - em nenhum lugar particular.
No outro pólo está a detenção, a constrição, provenientes de partes que mantêm
somente conexão mecânica umas com as outras. Existem tantos casos desses dois
tipos de experiência, que inconscientemente eles vêm a ser tomados como normas
de toda experiência. Então, quando surge o estético, opõe-se tão agudamente à
imagem formada da experiência, que se toma impossível adaptar suas qualidades
específicas às formas da imagem, e ao estético são conferidos lugar e condição
externos. O relato oferecido da experiência dominantemente intelectual e
prática procurou mostrar que ter uma experiência não implica tal oposição; pelo
contrário, nenhuma experiência, de que tipo seja, poderá constituir-se numa
unidade, a menos que apresente qualidade estética.
Os inimigos do
estético não são nem o prático nem o intelectual. São o monótono; a lassidão
dos fins indefinidos; a submissão à convenção nos procedimentos práticos e
intelectuais. Abstinência rígida, submissão pela força, tensão por um lado e
dissipação, incoerência e indulgência sem objetivo, por outro, são desvios, em
sentidos opostos, da unidade da experiência. Algumas destas considerações
talvez hajam induzido Aristóteles a invocar o "meio proporcional"
como a designação própria do que é distintivo tanto da virtude quanto do
estético. Ele foi formalmente correto. "Meio" e
"proporção", entretanto, não são explicáveis por si próprios, nem
devem ser tomados em seu sentido matemático primitivo, mas são propriedades
pertencentes a uma experiência que efetua um movimento de desenvolvimento em
direção à própria consumação.
Enfatizei o fato
de que cada experiência integral move-se em direção a um término, um fim, já
que cessa somente quando as energias nela ativas fizeram seu trabalho devido.
Este encerramento de um circuito de energia é o oposto da suspensão, da stasis.
Maturação e fixação são pólos opostos. A luta e o conflito podem ser
gozados eles próprios, ainda quando sejam dolorosos, quando experimentados como
meios para desenvolver uma experiência; membros desta porque a impulsionam, não
simplesmente porque estão aí. Como se verá mais tarde, há em toda experiência
um elemento de padecimento, de sofrimento, em sentido amplo. De outra maneira
não haveria incorporação vital, é algo mais do que colocar algo sobre a
consciência, sobre o previamente conhecido. Implica uma reconstrução que pode
ser penosa. Que a fase de padecimento necessário seja em si própria prazerosa
ou dolorosa, é algo que dependerá de condições particulares. Ela é indiferente
à qualidade estética total, salvo que há poucas experiências estéticas intensas
que sejam completamente prazerosas. Certamente não podem ser caracterizadas
como divertidas, pois, como pesam sobre nós, implicam um sofrimento, que nem
por isto deixa de ser consistente, e na verdade uma parte com referência à
percepção completa que é gozada.
Falei da
qualidade estética que promove o acabamento de uma experiência até torná-la
completa e una enquanto emocional. Esta referência pode causar dificuldades.
Somos dados a pensar sobre as emoções como coisas tão simples e compactas
quanto as palavras que utilizamos para nomeá-las. Alegria, tristeza, esperança,
temor, ira, curiosidade são tratadas como se cada uma, em si própria, fosse uma
espécie de entidade que entra em cena já completa, uma entidade que poderá
durar muito ou pouco tempo mas cuja duração, cujo crescimento e curso
mostram-se irrelevantes quanto a sua natureza. De fato, as emoções são
qualidades, quando são significativas, de uma experiência complexa que se move
e muda. Digo quando são significativas porque de outra maneira são
apenas distúrbios e erupções de uma criança perturbada. Todas as emoções são
qualificações de um drama e transformam-se à medida que o drama se desenrola.
Diz-se que algumas vezes as pessoas se apaixonam à primeira vista. Mas o que
sucede com elas não é algo que só pertença àquele instante. O que seria do amor
se fosse esmagado num momento em que não houvesse espaço para a carícia e para
a solicitude? A natureza íntima da emoção manifesta-se na experiência de
assistir a uma representação no teatro, ou de ler um romance. Assiste-se ao
desenvolvimento de um enredo; e o enredo requer um cenário, um espaço onde
desenvolver-se, e um tempo para desdobrar-se. A experiência é emocional, mas
não existem nela coisas separadas denominadas emoções.
Tanto é assim que
as emoções estão unidas aos eventos e objetos em seu movimento. Não são, a não
ser em casos patológicos, privadas. E mesmo uma emoção "sem objeto"
exige algo a que unir-se além de si própria, e assim produz rapidamente uma
desilusão, se houver falta de algo real. A emoção pertence certamente ao eu.
Mas pertence ao eu que se ocupa com o movimento dos eventos em direção a um
resultado desejado ou não desejado. Saltamos instantaneamente quando nos
assustamos, assim como no instante em que nos envergonhamos. Mas o temor e a
vergonha não são, neste caso, estados emocionais. São, por si próprios, apenas
reflexos automáticos. Para que se tornem emocionais devem converter-se em
partes de uma situação inclusiva e duradoura que implica conexão com os objetos
e seus resultados. O salto de temor torna-se temor emocional quando se encontra
ou se pensa na existência de um objeto ameaçador que precisa ser enfrentado ou
do qual se deve escapar. O rubor torna-se emoção de vergonha quando uma pessoa
conecta, em pensamento, uma ação que executou com uma reação desfavorável de
outra pessoa.
As coisas físicas
dos confins da terra são fisicamente transportadas e fisicamente dispostas para
agir e reagir umas sobre as outras na construção de um novo objeto. O milagre
da mente é que algo semelhante ocorre na experiência sem que haja transporte e
sem disposição de ordem física. A emoção é a força que move e consolida. Ela seleciona
aquilo que é congruente e tinge com seu matiz aquilo que é selecionado,
proporcionando, assim, unidade qualitativa a materiais externamente díspares e
dessemelhantes. Provê, portanto, unidade em e através das partes variadas da
experiência. Quando a unidade é do tipo já descrito, a experiência oferece
caráter estético, ainda quando não seja, dominantemente, uma experiência
estética.
Dois homens
encontram-se; um é o solicitante de um emprego, enquanto que o outro tem a
decisão em suas mãos. A entrevista pode ser mecânica, consistindo na colocação
de perguntas, das quais as respostas, perfunctoriamente, estabelecerão a
solução para o caso. Não há experiência na qual os dois homens se encontrem,
nada que não seja repetição, por meio de aceitação ou recusa, de alguma coisa
que já aconteceu muitas vezes. A situação encontra-se disposta como se fosse um
exercício de escrituração mercantil. Mas pode ocorrer uma interação na qual se
desenvolva uma nova experiência. Onde encontraríamos um dar conta de tal experiência?
Não no livro-razão, nem num tratado de economia ou de sociologia ou de
psicologia de pessoal, e sim no drama ou na ficção. Sua natureza e significação
podem ser expressas somente pela arte, porque há uma unidade da experiência que
pode ser expressa apenas enquanto uma experiência. A experiência constitui-se
de um material cheio de incertezas, movendo-se em direção a sua consumação
através de uma série de variados incidentes. As emoções fundamentais do
solicitante podem ser no princípio esperança ou desespero, e orgulho ou
desapontamento no final. Essas emoções caracterizam a experiência enquanto uma
unidade. Mas, na medida em que a entrevista prossegue, emoções secundárias
envolvem como variações das primárias. É mesmo possível que cada atitude e cada
gesto, cada sentença, quase cada palavra, produzam mais do que uma flutuação na
intensidade da emoção fundamental; isto é, produzam uma mudança de forma e de
coloração em sua qualidade. O empregador vê por meio de suas próprias reações
emocionais o caráter do solicitante. Projeta-o imaginativamente no trabalho a
ser feito e julga sua aptidão pela maneira pela qual os elementos da cena se
unem e colidem ou ajustam-se mutuamente. A presença e o comportamento do
solicitante ou se harmonizam com suas próprias atitudes e desejos, ou conflitam
e discordam. Fatores como esses, inerentemente estéticos quanto a sua
qualidade, são as forças que conduzem os diversos elementos da entrevista a um
resultado decisivo. Tomam parte na ordenação de toda situação, qualquer que
seja sua natureza dominante, na qual haja incerteza e indecisão.
Há, portanto,
padrões comuns a várias experiências, não importa quão diversas sejam uma da
outra nos pormenores de seu tema. Há condições a serem preenchidas sem as quais
uma experiência não pode vir a ser. O esquema do padrão comum é dado pelo fato
de que toda experiência é o resultado de interação entre uma criatura viva e
algum aspecto do mundo no qual ela vive. Um homem faz algo; levanta uma pedra,
por exemplo. Em conseqüência padece, sofre alguma coisa: o peso, a resistência,
a textura da superfície da coisa levantada. As propriedades assim sofridas
determinam o agir subseqüente. A pedra é excessivamente pesada ou muito
angulosa, ou não é suficientemente sólida; ou, ainda, as propriedades sofridas
mostram que ela é adequada para o uso para o qual foi pretendida. O processo
continua até que emerja uma adaptação mútua do eu e do objeto, e então tal
experiência específica alcança um término. O que é verdade quanto a este
simples exemplo é verdade, quanto à forma, relativamente a toda experiência. A
criatura operante poderá ser um pensador em seus estudos e as condições
ambientes com as quais ele interage poderão consistir de idéias, em vez de uma
pedra. Mas a interação de ambos constitui a experiência total que é tida, e o
término que a completa é a instituição de um sentimento de harmonia.
Por não se
apresentar apenas como fazer e sofrer em alternância, mas consistindo nos dois
em relação mútua, uma experiência tem modelo e estrutura. Alguém pôr a mão no
fogo que a consome não é necessariamente ter uma experiência. A ação e sua
conseqüência precisam estar juntas na percepção. Esta relação é o que
proporciona sentido; captá-la é o objetivo de toda inteligência. O âmbito e o
conteúdo das relações medem o conteúdo significativo de uma experiência. A
experiência de uma criança pode ser intensa, mas, por causa da falta do pano de
fundo da experiência passada, as relações entre o padecer e o fazer são
fracamente captadas, e a experiência não tem grande profundidade nem extensão.
Ninguém jamais alcança tal maturidade que perceba todas as conexões envolvidas.
Certa vez foi escrito (por Mr. Hinton) um romance intitulado O
Não-Aprendedor. Retratava toda a duração sem fim da vida após a morte como
um viver de novo os incidentes acontecidos durante uma curta vida sobre a
terra, em descoberta contínua das relações envolvidas por eles.
A experiência é
limitada por todas as causas que interferem com a percepção das relações entre
o sofrer e o fazer. Pode haver interferência por causa de excesso do ponto de
vista do fazer ou de excesso do lado da receptividade, do padecer. O
desequilíbrio, de qualquer lado, obscurece a percepção das relações e torna a
experiência parcial e distorcida, com escasso ou falso significado. O zelo pelo
fazer, o anelo pelo agir, deixam muitas pessoas, especialmente neste apressado
e impaciente ambiente humano em que vivemos, com experiências de pequenez quase
inacreditável, inteiramente superficiais. Nenhuma experiência tem oportunidade
de completar-se a si própria porque alguma coisa mais entra em cena muito
rapidamente. O que é chamado de experiência torna-se tão disperso e misturado,
que dificilmente faz jus ao nome. A resistência é tratada como uma obstrução a
ser evitada, não como um convite à reflexão. O indivíduo vem a procurar,
inconscientemente, mais do que por escolha deliberada, situações nas quais
possa fazer o maior número de coisas no menor tempo.
As experiências
também são interrompidas antes da maturação por excesso de receptividade. O que
é valorizado é, então, o mero padecer isto e aquilo, irrespectivamente à
percepção de qualquer significado. O agregado de tantas impressões quantas
forem possíveis é pensado ser "vida", ainda quando nenhuma delas seja
mais do que um esvoaçar e um sorver. O sentimentalista e o sonhador podem ter
mais fantasias e impressões passando por suas consciências do que o homem
animado pelo anelo de agir. Mas sua experiência é igualmente distorcida, porque
nada cria raízes na mente quando não há equilíbrio entre o fazer e o receber.
Alguma ação decisiva é necessária para estabelecer contato com as realidades do
mundo em vista de que as impressões possam ser de tal modo referidas aos fatos
que seu valor seja testado e organizado.
Ora, desde que a
percepção da relação entre o que é feito e o que é padecido constitui o
trabalho da inteligência, e desde que o artista é controlado no processo de seu
trabalho por sua apreensão da conexão entre o que já fez e o que deverá fazer
em seguida, a idéia de que o artista não pensa tão intensa e penetrantemente
quanto um pesquisador científico é absurda. Um pintor precisa padecer
conscientemente o efeito de cada toque de pincel, ou não será capaz de
discernir aquilo que está fazendo e para onde se encaminha seu trabalho.
Ademais, tem de ver cada conexão particular de sofrer e agir em sua relação com
o todo que deseja produzir. Apreender tais relações é pensar, e é uma das mais
exatas formas de pensamento. A diferença entre as pinturas de diferentes
pintores é devida mais a diferenças na capacidade de conduzir tal pensamento do
que a simples diferenças de sensibilidade à cor e a diferenças na destreza da
execução. No que diz respeito à qualidade básica das pinturas, a diferença
depende, na verdade, mais da qualidade da inteligência empregada na percepção
de relações do que de qualquer outro fator - ainda que naturalmente a
inteligência não possa ser separada da sensibilidade direta e seja conectada,
ainda que de modo mais externo, com a habilidade.
Qualquer visão que
ignora o papel necessário da inteligência na produção de obras de arte está
baseada na identificação do pensamento com o uso de um tipo especial de
material, signos verbais e palavras. Pensar efetivamente em termos de relações
de qualidades é uma exigência severa posta sobre o pensamento, tanto quanto o
pensar em termos de símbolos verbais e matemáticos. Com efeito, desde que as
palavras são facilmente manipuladas de modo mecânico, a produção de uma obra de
arte genuína provavelmente exige mais inteligência do que a maior parte do
chamado pensar entre aqueles que se gloriam de ser "intelectuais".
Tentei mostrar,
nestes capítulos, que o estético não é um intruso na experiência, seja por meio
de um luxo vão ou de uma idealidade transcendente, mas que ele é o
desenvolvimento clarificado e intensificado de traços que pertencem a toda
experiência normalmente completa. Considero este fato a única base segura sobre
a qual a teoria estética pode ser construída. Resta sugerir algumas das
implicações deste fato fundamental.
Não possuímos em
inglês palavra que, sem ambigüidade, inclua o que é significado pelas duas
palavras "artístico" e "estético", Desde que
"artístico" se refere primordialmente ao ato de produção, e
"estético" ao de percepção e apreciação, a ausência de um termo
designando os dois processos tomados em conjunto é lamentável. Algumas vezes, a
conseqüência se toma a separação dos dois processos um do outro, a consideração
da arte como algo que se superpõe ao material estético, ou, do outro lado, a assunção
de que, uma vez que a arte é um processo de criação, a percepção e a apreciação
da mesma nada tem a ver com o ato criativo. Em qualquer dos casos, há certa
inépcia verbal pela qual nos vemos compelidos a algumas vezes utilizar o termo
"estético" para cobrir todo o campo e algumas vezes a limitá-lo ao
aspecto receptivo-perceptivo da operação total. Faço referência a tais fatos
óbvios enquanto preliminares com relação a uma tentativa de mostrar como a
concepção de experiência consciente enquanto relação percebida entre o fazer e
o padecer torna-nos aptos para a compreensão da conexão que a arte enquanto
produção e percepção, e a apreciação enquanto gozo, mantêm uma com relação à
outra.
A arte denota um
processo de fazer ou obrar. Isto é tão verdadeiro das belas-artes quanto da
arte tecnológica. A arte envolve a moldagem do barro, o lavrar do mármore, a
fundição do bronze, a aplicação de pigmentos, a construção de edifícios, o
cantar canções, a execução de instrumentos, representar papéis no palco, realizar
movimentos rítmicos na dança. Toda arte faz alguma coisa com algum material
físico, o corpo ou alguma coisa fora do corpo, com ou sem o uso de
instrumentos, e com vistas à produção de algo visível, audível, ou tangível.
Tão marcante é o aspecto ativo da arte, ou o aspecto "fazer", que os
dicionários geralmente a definem em termos de ação destra, habilidade na
execução. O Dicionário de Oxford ilustra o fato com uma citação de John
Stuart Mill: "A arte é um esforço para a perfeição na execução",
enquanto Matthew Arnold a denomina "pura e perfeita habilidade".
A palavra
"estético" refere-se, como já observamos, à experiência enquanto
apreciativa, perceptiva e agradável. Denota o ponto de vista do consumidor,
mais do que o do produtor. É gusto, gosto; e, como ocorre com o
cozinhar, onde a ação hábil externa está do lado do cozinheiro que prepara,
enquanto o paladar está do lado do que consome, assim também na jardinagem há
uma distinção entre o jardineiro, que planta e cultiva, e o dono da casa, que
frui o produto acabado.
Os exemplos
mencionados, entretanto, bem como a relação que existe, quando se tem uma
experiência, entre o fazer e o sofrer, indicam que a distinção entre o estético
e o artístico não pode ser levada tão longe que venha a tomar-se uma separação.
A perfeição na execução não pode ser medida ou definida em termos de execução;
ela implica aqueles que percebem e gozam o produto executado. O cozinheiro
prepara comida para o consumidor e a medida do valor do que é preparado
encontra-se no consumir. A pura perfeição na execução, julgada em seus próprios
termos isoladamente, poderá provavelmente ser mais bem conseguida por uma
máquina do que pela arte humana. Por si própria, é quando muito uma técnica, e
há grandes artistas que não estão na primeira linha como técnicos (como é o
caso de Cézanne), assim como há grandes executantes de piano que não são
grandes esteticamente, e assim como Sargent não é um grande pintor.
O artesanato,
para ser artístico no sentido próprio, tem de ser "afetuoso"; tem de
cuidar profundamente do objeto sobre o qual é exercida a habilidade. Vem-me à
mente um escultor, cujos bustos são maravilhosamente exatos. Seria difícil
dizer, diante de uma fotografia de um deles e de uma fotografia do original,
qual seria a da própria pessoa. Do ponto de vista virtuosístico, são
extraordinários. Contudo, é duvidoso que o escultor dos bustos tenha tido uma
experiência própria que estava interessado em compartilhar com os que apreciam
suas produções. Para ser verdadeiramente artística, uma obra tem também de ser
estética - isto é, feita para ser gozada na percepção receptiva. A observação
constante é, naturalmente, necessária para o autor enquanto está produzindo.
Mas, se sua percepção não é também de natureza estética, não passa de um reconhecimento
descolorido e frio daquilo que foi feito, utilizado como um estímulo para o
passo seguinte em um processo essencialmente mecânico.
Em uma palavra, a
arte, em sua forma, une as mesmas relações de fazer e padecer, a energia de ida
e de vinda, que faz com que uma experiência seja uma experiência. Por causa da
eliminação de tudo o que não contribui para a mútua organização dos fatores da
ação e da recepção, e por causa da seleção justamente dos aspectos e traços que
contribuem para a sua interpenetração, o produto é uma obra de arte estética. O
homem talha, esculpe, canta, dança, gesticula, modela, desenha e pinta. O fazer
ou obrar é artístico quando o resultado percebido é de tal natureza que suas
qualidades enquanto percebidas controlaram a produção. O ato de
produzir dirigido pela intenção de produzir alguma coisa gozada na experiência
imediata do perceber tem qualidades que uma atividade espontânea ou
não-controlada não tem. O artista incorpora a si próprio a atitude do que
percebe, enquanto trabalha.
Suponha-se, para
efeito de ilustração, que um objeto finamente trabalhado, cuja textura, e
proporções sejam extremamente agradáveis para a percepção, haja sido
considerado como produção de qualquer povo primitivo. Foram então descobertas
evidências provando tratar-se de uma produção acidental natural. Como coisa
externa, tal objeto mantém-se exatamente aquilo que era antes. Mas deixa
imediatamente de ser uma obra de arte, tornando-se uma "curiosidade"
natural. Pertence, agora, a um museu de história natural, não a um museu de
arte. E o extraordinário é que a diferença assim estabelecida não é apenas de
classificação intelectual. Estabelece-se diferença na percepção apreciativa, e
de um modo direto. Portanto, vê-se que a experiência estética - em seu sentido
limitado - está inerentemente conectada com a experiência do fazer.
A satisfação
sensorial dos olhos e dos ouvidos, quando estética, é tal porque não se mantém
por si própria, mas esta ligada à atividade da qual é a conseqüência. Mesmo os
prazeres do paladar são diferentes em qualidade para um epicurista e para
alguém que simplesmente "gosta" do alimento quando o consome. A
diferença não se limita à intensidade. O epicurista está ciente de muito mais
do que do paladar da comida. Particularmente entram em seu gosto, como
diretamente experimentadas, qualidades que dependem de referência a sua fonte e
a sua maneira de produção em conexão com critérios de excelência. Como a
produção tem de absorver dentro de si própria qualidades do produto como
percebido e ser regulada por elas, assim também, por outro lado, ver, ouvir,
provar tornam-se estéticos quando a relação com uma forma distinta de atividade
qualifica aquilo que é percebido.
Há um elemento de
paixão em toda percepção estética. Mas, quando estamos dominados pela paixão,
como no caso de raiva extrema, de medo, ciúme, a experiência é definitivamente
não-estética. Não há relação sentida com as qualidades da atividade que gerou a
paixão. Conseqüentemente o material da experiência carece de elementos de equilíbrio
e de proporção. Pois estes podem estar presentes tão-somente quando, como na
conduta caracterizada pela graça ou pela dignidade, o ato é controlado por uma
requintada sensibilidade face às relações que mantém - sua adequação à ocasião
e à situação.
O processo da
arte na produção está relacionado organicamente com o estético na percepção -
como o Senhor Deus, na criação, inspecionou sua obra e viu que era boa. Até que
o artista esteja satisfeito com a percepção do que está fazendo, continua
formando e reformando. O fazer chega a um fim quando seu resultado é
experimentado como bom - e essa experiência vem não por mero juízo intelectual
e externo, mas na percepção direta. Um artista, em comparação com seus
próximos, é alguém que não apenas é especialmente dotado com poderes de
execução, mas também com sensibilidade incomum para as qualidades das coisas.
Tal sensibilidade dirige também seu fazer e seu obrar.
Quando
manipulamos, tocamos e sentimos; quando olhamos, vemos; quando escutamos,
ouvimos. A mão move-se com o estilete de gravador ou com o pincel. Os olhos
observam e relatam as conseqüências do que foi feito. Por causa dessa íntima
conexão, o fazer subseqüente é cumulativo e não questão de capricho, nem
tampouco de rotina. Numa enfática experiência estético-artística, a relação é
tão íntima que controla simultaneamente o fazer e a percepção. Tal intimidade
vital de conexão não pode ser tida se apenas a mãos e olhos estiverem
engajados. Quando eles não podem, ambos, agir enquanto órgãos do ser em sua
inteireza, ocorre apenas uma seqüência mecânica de sensação e movimento, como
no caso de se andar automaticamente. As mãos e os olhos, quando a experiência é
estética, são instrumentos através dos quais a criatura viva inteira,
totalmente ativa e em movimento, opera. Então a expressão é emocional e guiada
por um propósito.
Devido à relação
entre o que é feito e há um sentido imediato das coisas na percepção como
concordantes ou discordantes, como reforçando-se ou interpondo-se. As
conseqüências do ato de fazer transmitidas à sensibilidade mostram se o que se
faz leva avante a idéia que se executa ou caracteriza um desvio e quebra. Na
medida em que o desenvolvimento de uma experiência é controlado pela
referência a essas relações imediatamente sentidas de ordem e de preenchimento,
tal experiência torna-se predominantemente estética em sua natureza. O ímpeto
para a ação torna-se um ímpeto para um tipo de ação que trará como resultado um
objeto satisfatório na percepção direta. O oleiro modela seu barro para fazer
um recipiente útil para guardar grãos; mas o faz de modo tão regulado pelas
séries de percepções que resumem os atos seriais do fazer, que o vaso fica
caracterizado por graça e encanto duradouros. A situação geral permanece a
mesma no caso da pintura de um quadro ou no da modelagem de um busto. Ademais,
a cada estágio há antecipação do que está por vir. Essa antecipação é o liame
conectivo entre o ato que vem a seguir e seu resultado para a sensibilidade. O
feito e o sofrido são, portanto, recíproca, cumulativa e continuamente
instrumentais um com respeito ao outro.
O
fazer pode ser enérgico, e o sofrer pode ser agudo e intenso. Mas, a menos eles
sejam postos em relação um com o outro constituindo um todo na percepção, a
obra resultante não será completamente estética. O obrar, por exemplo, pode ser
uma exibição de virtuosismo técnico, e o sofrer um extravasar de sentimentos ou
um devaneio. Se o artista não produzir uma nova visão em seu processo de fazer,
agirá mecanicamente e repetirá algum antigo modelo fixado como um padrão em sua
mente. Uma quantidade incrível de observação e do tipo de inteligência que se
exerce na percepção de relações qualitativas caracteriza a obra criativa em arte. As relações têm de
ser distingüidas não apenas uma com respeito à outra, duas as duas, mas em
conexão com o todo em construção; são exercidas na imaginação tanto quanto na
observação. Surgem irrelevâncias que representam distrações tentadoras;
fazem-se presentes digreções sob a aparência de enriquecimentos. Há ocasiões em
que a captação da idéia dominante torna-se tênue, e então o artista é
inconscientemente movido a demorar-se nela até que seu pensamento volte a
fortalecer-se. O trabalho real de um artista é construir uma experiência
coerente na percepção, ao mesmo tempo que um movimento acompanhado de mudança
constante em seu desenvolvimento.
Quando um autor
transfere para o papel idéias já claramente concebidas e coerentemente
ordenadas, o trabalho real antecedeu o ato de escrever. Por outro lado, o autor
pode apoiar-se na maior perceptibilidade induzida pela atividade e sua
repercussão sensível para dirigir a consumação da obra. O simples ato da
transcrição é esteticamente irrelevante, salvo na medida que participe
integralmente da formação de uma experiência que se mova para o completar-se.
Mesmo a composição concebida no cérebro e, portanto, fisicamente privada, é
pública em seu conteúdo significativo, de vez que é concebida com referência à
execução geradora de uma produção perceptiva e, portanto, pertencente ao mundo
comum. De outro modo ela seria uma aberração ou um sonho passageiro. O impulso
para expressar pela pintura as qualidades percebidas de uma paisagem é contínuo
em relação à exigência de lápis ou de pincel. Sem incorporação externa, uma
experiência permanece incompleta; fisiológica e funcionalmente, os órgãos dos
sentidos são os órgãos motores e estão conectados, por meio da distribuição das
energias no corpo humano e não apenas anatomicamente, com outros órgãos
motores. Não é por qualquer acidente lingüístico que “edificação”, “construção”
e "obra" designam tanto um processo quanto seu produto acabado. Sem o
significado do verbo, permanece vazio o do substantivo.
O escritor, o
compositor, o escultor ou o pintor podem retraçar, durante o processo de produção,
a parte previamente feita. Quando ela não se revela satisfatória no padecer, ou
na fase perceptiva da experiência, eles podem, em certa medida, principiar tudo
novamente. Esse retraçar não é realizado facilmente no caso da arquitetura - o
que talvez seja um dos motivos pelos quais haja tantos edifícios feios. Os
arquitetos são obrigados a completar sua idéia antes que ocorra a transferência
da mesma para um objeto completo de percepção. Essa incapacidade de construir
simultaneamente a idéia e seu incorporar-se objetivo impõe uma desvantagem. Não
obstante, também eles são obrigados a pensar suas idéias em termos do meio de
incorporação e do objeto da percepção definitiva, a menos que trabalhem
mecanicamente e de modo rotineiro. Provavelmente a qualidade estética das
catedrais medievais deve-se em parte ao fato de que suas construções não foram
demasiado controladas por plantas e especificações prévias, como se faz hoje em dia. As plantas
desenvolviam-se na medida do crescimento das edificações. Mas, mesmo uma
produção tal como a Minerva, para que seja artística, pressupõe um período
prévio de gestação no qual os atos de percepções projetados na imaginação
interagem e modificam-se mutuamente. Toda obra de arte segue o plano de, e o
padrão de, uma experiência completa, tornando-a mais intensa e concentradamente
sentida.
Não é tão fácil,
para o caso daquele que percebe, ou seja, do apreciador, entender a união
íntima do fazer e do padecer, como sucede com relação ao caso daquele que
produz. Somos dados a supor que o primeiro simplesmente absorve aquilo que se
encontra em forma acabada, em vez de compreendermos que tal absorção implica
atividades comparáveis às do criador. Não obstante, receptividade não é
passividade. É também um processo que consiste numa série de atos de resposta
que se acumulam, direcionados para a culminância objetiva. De outra maneira, o
que haverá não será percepção, e sim reconhecimento. A diferença entre os dois
é imensa. O reconhecimento é a percepção detida antes que tenha oportunidade de
desenvolver-se livremente. No reconhecimento há o princípio de um ato de
percepção. Mas não é permitido a esse começo pôr-se a serviço do
desenvolvimento de uma percepção plena da coisa reconhecida. É detido no ponto
em que será posto a serviço de qualquer outro propósito, assim como
reconhecemos um homem na rua a fim de cumprimentá-lo ou de evitá-lo, não para
vê-lo com o propósito de ver quem é.
No reconhecimento
recaímos, como em um estereótipo, sobre um esquema previamente formado. Alguma
minúcia ou conjunto de minúcias serve como chave para efeito de simples
identificação. É suficiente, no caso de reconhecimento, aplicar ao objeto
presente tal esquema, como se fora um padrão. Algumas vezes, em contato com um
ser humano, surpreendemo-nos com traços, talvez apenas de características
físicas, dos quais não estivéramos cônscios até então. Damo-nos conta de que
antes nunca conhecemos a pessoa; nem a havíamos visto, em sentido rigoroso.
Agora começamos a estudar e a "absorver". A percepção substitui o
simples reconhecimento. Há um ato de atividade reconstrutora, e a consciência
torna-se forte e vívida. Este ato de ver implica a cooperação de todos
os elementos motores, ainda quando permaneçam implícitos e não se exteriorizem,
assim como a cooperação de todas as idéias acumuladas que possam servir para
completar o novo quadro em
formação. O reconhecimento é cômodo demais para que desperte
uma consciência vívida. Não há suficiente resistência entre o antigo e o novo,
que assegure a consciência da experiência que é tida. Até um cão que ladra e
move alegremente a cauda ao ver regressar seu dono está mais plenamente vivo ao
receber seu amigo do que um ser humano que se contenta com o simples
reconhecimento.
O reconhecimento
enquanto tal é satisfeito quando se aderem um rótulo ou etiqueta apropriados,
"apropriados" no sentido de servirem a um fim externo ao ato de
reconhecimento - como um vendedor identifica a mercadoria por uma amostra. Não
envolve qualquer tumulto do organismo, ou comoção interior. Já um ato de percepção
processa-se por ondas que se estendem serialmente através de todo o organismo.
Não há na percepção, por conseguinte, tal coisa como o ver ou o ouvir e mais
a emoção. O objeto ou cenário percebidos ficam completamente penetrados
emocionalmente. Quando uma emoção despertada não permeia o material que é
percebido ou pensado, tal emoção é ou preliminar ou patológica.
O aspecto
estético ou padecido da experiência é receptivo. Implica submissão. Mas a
docilidade adequada do eu só é tornada possível através de uma atividade
controlada, a qual poderá ser intensa. Furtamo-nos, durante grande parte de
nosso intercurso, com nossos arredores; algumas vezes por medo, mesmo se apenas
de despender indevidamente nossas reservas de energia; algumas vezes por preocupação
com outros assuntos, como no caso do reconhecimento. A percepção é um ato de
saída de energia a fim de receber, não uma retenção de energia. Para
tornarmo-nos impregnados de um assunto, temos primeiramente de submergir nele.
Quando somos apenas passivos frente a um cenário, este nos oprime e, por falta
de atividade de resposta, não percebemos aquilo que nos esmaga. Temos de fazer
um chamado à energia e lançá-la como uma resposta a fim de assimilar.
Todos sabem que
ver através de um microscópio ou telescópio requer aprendizado, assim como ver
uma paisagem tal qual o geólogo a vê. A idéia de que a percepção estética é
questão de momentos singulares é uma das razões para o atraso das artes entre
nós. Os olhos e o aparelho visual podem estar intactos; o objeto pode estar
fisicamente aqui, a catedral de Notre-Dame, ou o retrato de Hendrik Stoeffel
por Rembrandt. Em certo sentido superficial, podem ser "vistos".
Podem ser olhados, possivelmente reconhecidos, e ter seus nomes corretamente
apostos. Mas, por falta de interação contínua entre o organismo total e os
objetos, não são percebidos, certamente não esteticamente. Um grupo de
visitantes, conduzidos através de uma galeria de pintura por um guia, com a
atenção chamada aqui e ali para algum ponto importante, não percebe; só por
acidente haverá interesse em ver uma pintura pelo tema vividamente realizado.
Porque, para
perceber, um espectador precisa criar sua própria experiência. E sua
criação tem de incluir conexões comparáveis àquelas que o produtor original
sentiu. Não são as mesmas, em qualquer sentido literal. Não obstante, com o
espectador, assim como com o artista, tem de haver uma ordenação dos elementos
do todo que é, quanto à forma, ainda que não quanto aos pormenores, a mesma do
processo de organização que o criador da obra experimentou conscientemente. Sem
um ato de recriação, o objeto não será percebido como obra de arte. O artista
selecionou, simplificou, clarificou, abreviou e condensou de acordo com seu
desejo. O espectador tem de percorrer tais operações de acordo com seu ponto de
vista próprio e seu próprio interesse. Em ambos tem lugar um ato de abstração,
isto é, de extração do que é significativo. Em ambos, há compreensão, em sua
significação literal - isto é um ajuntar minúcias e particularidades
fisicamente dispersas em um todo experimentado. Há um trabalho realizado pelo
que percebe, assim como pelo artista. Aquele que, por ser demasiadamente
preguiçoso, frívolo ou obstinado nas convenções, não efetue esse trabalho, não
verá, nem ouvirá. Sua "apreciação" será uma mistura de fragmentos do
saber em conformidade com normas de admiração convencional e com uma confusa,
ainda se genuína, excitação emocional.
As considerações
que foram apresentadas implicam tanto a comunidade quanto a dessemelhança, por
causa da ênfase específica, entre uma experiência, em seu sentido pleno,
e a experiência estética. A primeira tem qualidade estética; de outra maneira
os materiais não se desenvolveriam numa experiência única coerente. Não é
possível separar, numa experiência vital, o prático, o emocional e o
intelectual uns dos outros, e pôr as propriedades de um em oposição às dos
outros. O aspecto emocional liga as partes num único todo;
"intelectual" simplesmente nomeia o fato de que a experiência tem
significado; "prático" indica que o organismo está em interação com
eventos e objetos que o rodeiam. A mais elaborada investigação filosófica ou
científica e a mais ambiciosa empresa industrial ou política, quando seus
diferentes constituintes formam uma experiência integral, têm qualidade
estética, de vez que então suas várias partes estão ligadas umas às outras, e
não apenas sucedem uma' a outra. E as partes, através de sua ligação
experimentada, movem-se em direção à consumação e ao término, não apenas à
cessação no tempo. Essa consumação, ademais, não espera na consciência até que
toda a empresa esteja terminada. É antecipada a cada momento e periodicamente
degustada com especial intensidade.
Não obstante, as
experiências em questão são dominantemente intelectuais ou práticas, antes de
serem distintivamente estéticas, por causa do interesse e do propósito
que as anima e controla. Numa experiência intelectual, a conclusão tem valor
por si própria. Pode ser separada como uma fórmula ou, como uma
"verdade", e pode ser utilizada em sua inteireza independente como um
agente e guia em outras investigações. Numa obra de arte não há tal resíduo
auto-suficiente. O fim, o término, é significativo não por si próprio, mas
enquanto integração das partes. Não possui outra existência. Um drama ou um
romance não são a sentença final, mesmo sendo as personagens descritas como
vivendo muito felizes desde então. Numa experiência distintivamente estética,
as características mais apagadas em outras experiências tomam-se dominantes; as
subordinadas tomam-se controladoras - a saber, as características em virtude
das quais a, experiência é uma experiência integrada e completa em si própria.
Em cada
experiência intelectual há forma porque há organização dinâmica. Chamo a
organização de dinâmica porque ela toma tempo para completar-se, porque é um
crescimento. Há início, desenvolvimento, cumprimento. O material é ingerido e
digerido pela interação com a organização vital dos resultados de uma
experiência anterior que constitui a mente do que obra. A incubação prossegue
até que o concebido é trazido à luz e tomado perceptível como parte do mundo
comum. Uma experiência estética pode ser comprimida num momento apenas no
sentido de que um clímax de um processo anterior longamente duradouro pode chegar
através de um movimento que se destaca, que absorve de tal modo tudo o mais,
que tudo o mais é esquecido. O que distingue uma experiência como estética é a
conversão das resistências e das tensões, das excitações que em si próprias são
tentações para a dispersão, em um movimento dirigido para um término inclusivo
e satisfatório.
A experiência,
como o respirar, é um ritmo de inspirações e expirações. Sua sucessão é
pontilhada e tornada um ritmo pela existência de intervalos, pontos nos quais
uma fase cessa e a outra está latente e em preparação. William James
comparou apropriadamente o curso de uma experiência consciente com os vôos e
pousos alternados de um pássaro. Os vôos e pousos estão intimamente conectados
um com o outro; não são descansos desconexos seguidos de vôos igualmente
desconexos. Cada lugar de descanso na experiência é um padecer em que são
absorvidas e abrigadas as conseqüências de um fazer anterior, e, a menos que o
fazer seja o do total capricho ou o da rotina pura, cada fazer traz em si
próprio um significado que foi extraído e conservado. Como no avanço de um
exército, todos os ganhos já efetuados são periodicamente consolidados, e
sempre em vista do que se fará depois. Se nos movemos rápido demais,
afastamo-nos da base de suprimentos - dos significados acumulados - e a
experiência é aturdida, pobre e confusa. Se perdermos tempo demais após
havermos extraído um valor líquido, a experiência perece de inanição.
A forma do
todo é, por conseguinte, algo presente em cada membro. Cumprir, consumar são
funções contínuas, não puros fins, localizados num lugar somente. Um gravador,
ou um pintor, ou um escritor, estão em processo de completar a cada estágio de
suas obras. Têm de, a cada ponto, reter e resumir o que foi feito antes como um
todo, e com referência a um todo por vir. De outro modo, não haverá coerência
nem segurança nos seus atos consecutivos. As séries de ações, no ritmo da
experiência, proporcionam variedade e movimento; salvam a obra de monotonia e
de repetições inúteis. Os padeceres são os elementos correspondentes no ritmo,
e provêem a unidade; salvam a obra da falta de objetivos representada pela pura
sucessão de excitações. Um objeto é peculiar e dominantemente estético,
produzindo a satisfação característica da percepção estética, quando os fatores
que determinam o que quer que possa ser chamado uma experiência
elevam-se por sobre o limiar da percepção, e são tomados manifestos por si
próprios.
BIBLIOGRAFIA
DEWEY, John.Tendo uma experiência (cap.
Do livro Arte como Experiência). In: Os pensadores. São Paulo: Abril SA
Cultural e Industrial, p 247–263, 1974.
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